quarta-feira, 1 de outubro de 2014

MEDICINA: 'Aqui há preconceito contra médicos brasileiros como tínhamos contra bolivianos no Brasil'



A patologista Fernanda Amary, de 43 anos, saiu de São Paulo em 2010 e passou a trabalhar Royal National Orthopaedic Hospital, em Londres. O hospital, que faz parte da rede de saúde pública britânica (NHS), é o maior centro de tratamento ortopédico no Reino Unido.

Em depoimento à repórter Mariana Schreiber, da BBC Brasil, ela conta sobre as dificuldades para ser contratada e conquistar o respeito dos colegas e também sobre as diferenças entre o trabalho no Brasil e no Reino Unido.

Ela é uma dos 97 mil médicos que atuam no país cuja formação foi obtida no exterior - o que representa 36% do total de 267,5 mil profissionais registrados para atuar no Reino Unido. A maioria desses profissionais vêm de ex-colônias britânicas como Índia, Paquistão e Nigéria.

Leia o relato de Fernanda Amary à BBC Brasil:

"Eu fui convidada para trabalhar no Royal National Orthopaedic Hospital após ter feito parte da minha pesquisa de doutorado aqui entre 2005 e 2006. Eu sou patologista especializada em um tipo raro de câncer que ataca ossos e tecidos moles: os sarcomas.

Como eu já tinha 12 anos de experiência no Brasil, achei pela lógica que o caminho mais fácil seria requerer registro diretamente na minha especialidade, em vez de fazer as provas básicas para validação do diploma de médico. No entanto, todo o processo de apresentação de documentos e registros que comprovassem minhas qualificações e experiência prévia no Brasil levou três anos. Se soubesse que seria tão complicado, não teria feito. Tive que fazer um relatório de todos os casos que acompanhei nos últimos cinco anos, traduzir meus títulos, diplomas e laudos anônimos de patologia. Precisei submeter o pedido duas vezes, pois pediram mais detalhes.

Quando meu registro foi aprovado, em 2009, o hospital teve que anunciar a vaga por um mês, para o caso de algum cidadão da União Europeia se interessar. No entanto, o cargo exigia uma especialização muito específica e não houve outros candidatos.

Comecei a trabalhar em março de 2010 com uma equipe de outros médicos. Todos os cirurgiões e quase todos os oncologistas e radiologistas são britânicos. Na minha equipe de quatro patologistas, porém, somos todos estrangeiros. Além de mim, há um italiano, um sul-africano e uma irlandesa.

Preconceito e organização

Não sofri preconceito frontal por ser brasileira, mas eu sinto que existe, assim como existe no Brasil em relação a médicos chilenos ou bolivianos, por exemplo. Nós pensávamos: "eles nem sabem falar português”.

Eu falo bem inglês, mas nunca é como uma primeira língua. Às vezes, é difícil quando você quer argumentar muito na discussão de um caso.

Eu trabalhava há muitos anos na Santa Casa de São Paulo. Eu saí de um lugar onde todo mundo me conhecia e me respeitava como profissional para um lugar onde ninguém me conhecia. Então, demorou mais de um ano para que os colegas começassem a me ligar para pedir opinião sobre os casos.

Sinto muita falta do povo brasileiro e quero voltar em breve para aplicar o que aprendi aqui. No Brasil, os médicos são muito bons. A grande diferença entre os sistemas de saúde britânico e brasileiro é a organização.

No hospital em que trabalho, toda semana fazemos uma reunião multidisciplinar para discutir os casos conjuntamente em uma videoconferência também com a equipe do hospital da University College London. Participam do encontro seis oncologistas, quatro cirurgiões, três patologistas, de dois a seis radiologistas, três enfermeiras e duas coordenadoras de reunião multidisciplinar, que organizam os dados dos pacientes e exibem as informações em data show.

Nesse encontro, temos um prazo de 31 dias para avaliar casos encaminhados pelo médico de cada paciente (o general practitioner, GP, que é uma espécie de clinico geral). Nós descartamos ou confirmamos a suspeita de câncer e decidimos que exames ou procedimentos adicionais devem ser feitos. Há então um prazo de mais 31 dias para operar o paciente se necessário e iniciar outros tratamentos como radioterapia e quimioterapia.

No Brasil, fazíamos encontros para discutir apenas os casos mais graves e isso dependia da iniciativa dos médicos. Aqui, é uma regra e eu tenho que estar presente em 75% dos encontros. As regras são mais claras e são monitoradas. Isso precisa ser feito no Brasil: organizar e acompanhar melhor o caminho do paciente dentro do sistema de saúde.

É uma questão mais administrativa do que médica. Talvez seja necessário atrair administradores motivados para gerenciar esta organização. É de uma complexidade imensa. Mesmo aqui as coisas não foram organizadas da noite para o dia, muita coisa mudou nos últimos 20 anos. O Brasil é um país do tamanho de toda a Europa, com muitas diferenças regionais. O tamanho e as distâncias já constituem um grande obstáculo para a centralização do atendimento em centros de especialidade.

Sistema público

Aqui, mesmo quem tem alto poder aquisitivo geralmente não tem plano de saúde. Mas, apesar do NHS ser mais eficiente que o SUS, ele também não é perfeito. A pessoa se registra com um general practitioner (GP) em um local de atendimento do NHS da região onde mora. O GP faz o atendimento inicial e decide se deve ou não encaminhar o paciente para um médico especialista. Se não for grave, a pessoa não é encaminhada adiante.

Então, há uma cultura de só ir ao médico se a pessoa considera que seu caso é grave, evitando assim tomar o lugar de alguém que precise mais. Por exemplo, um colega com quem jogo tênis estava com dor no joelho um dia e me disse que não iria ao médico porque sabia que não seria encaminhado para o especialista.

O problema é que muitas vezes isso causa atrasos no diagnóstico. Eu vejo aqui tumores tão grandes como no Brasil, o que me surpreendeu.

Agora estou trabalhando também no desenvolvimento de um aplicativo para tablets e smartphones para que possamos compartilhar com outros médicos e estudantes de Medicina os casos que tratamos aqui, que são raros. Eu ganhei 100 mil libras (R$ 390 mil) para isso em uma seleção do hospital.

Aqui, temos mais tempo dedicado à pesquisa. Em 2011, minha equipe também recebeu o prêmio de excelência em pesquisa de patologia Jeremy Jass por ter identificado uma mutação genética que está presente em metade dos condrossarcomas – o segundo tipo mais comum de câncer de osso. A descoberta é muito importante para o desenvolvimento de novos remédios."

FONTE: BBC

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